Faz dois dias que mamãe não
aparece em casa. Ela deixou meu jantar pronto no forno e um bilhete em cima da
mesa bamba da cozinha. “Fui dar uma volta com o Bruce. Seu jantar está no
forno. Não me espere acordada. Beijos, M”. Ela assinou com a inicial M, apesar
do nome dela ser Laura. M era de mamãe. Ela era mãe solteira, me teve com 17
anos e achava muito engraçado eu só chamá-la de mamãe. “Esse deve ser meu nome,
então. Mamãe, não Laura.”, ela costumava dizer. Não adiantou em nada eu
explicar para ela que os filhos não costumam chamar os pais pelo nome, eles
dizem mãe e pai. Ela retrucava que ela tratava a mãe pelo nome ou por senhora.
Essa era uma das únicas vezes que falávamos sobre a vovó e sempre que ela era
mencionada, a conversa morria ou mamãe mudava rápido de assunto. Vovó se
chamava Adelaide e era uma mulher muito rígida. Expulsou minha mãe de casa
quando soube que ela estava grávida de mim e nunca mais falou com ela. Eu nunca a conheci, mas isso não é tão incomum. Tenho uma tia e dois primos,
nunca os vi. Também acho que tenho um pai, mas ele nunca sequer foi mencionado.
Eu sei que todo mundo tem um pai, não sou bobinha nem nada, sei de onde vêm os
bebês. Afinal, já tenho 12 anos. Mas minha mãe nunca falou nele e nunca pareceu
haver ninguém além dos homens que ela traz aqui pra casa de vez em quando. Às
vezes eles são legais, outras vezes eles são de dar medo ou acham que tem o
direito de me educar enquanto estão frequentando a cama da minha mãe. A maioria
simplesmente ignora que ela tem uma filha e nem sequer olha pra mim. Tudo bem,
tudo estava bem... Até minha mãe não voltar para casa. Eu continuo indo para
escola, fazendo minhas próprias refeições, mantendo a casa em ordem e me
colocando pra dormir a noite. Hoje encontrei o pote de moedas da mamãe e paguei
o que ela estava devendo pro mercadinho aqui da esquina. Tinha mais de 30 reais
em moedas de 50 e 25 centavos! Mamãe talvez volte hoje. Eu não consigo ficar
preocupada com ela, não realmente. Ela é o tipo de mulher que sabe se virar em
qualquer situação. Quando foi expulsa de casa, ela arranjou um emprego num bar,
alugou um apartamento de dois cômodos e me teve sozinha. Só depois vieram os
namorados. Eu aceito os namorados, porque sei como é difícil pra ela estar
sozinha. Ela nunca tinha dinheiro pra nada, fazia o que podia pra me criar e
nunca deixou que eu ficasse sem estudar. Ela não bebia, não cultivava vícios e
mesmo com toda a merda que ela enfrentava, estava sempre sorrindo. Certa vez,
faltou comida. Ela virou pra mim e disse: “Vamos fazer um jogo. Nós estamos
perdidos na selva e a comida está acabando, por isso precisamos economizar. Mas
no final, quando a gente conseguir sair da selva, vai ter comida sobrando!”.
Nunca teve comida sobrando, mas a gente saiu da selva. Só estou dizendo que ela
é uma mulher forte e tudo bem se ela não consegue ficar sozinha por muito tempo. Duvido muito que o Bruce fosse fazer algum mal a ela
também. Ele é tão pobre como a gente e ainda é metido a ator, mas é inofensivo. Bruce nem é o
nome de verdade dele, é nome artístico. Eu nunca fiquei sabendo o nome de
verdade. Tudo que ele tem é uma ambição e um ego do tamanho do mundo e talento
faltando. O mais provável é que mamãe tenha dado o fora. Ela tinha contas
demais, sempre reclamava das contas. Reclamava rindo como se fosse apenas mais
um jogo. Aposto que ela deu o fora com algum cara. Não o Bruce, ela mesma dizia
que ele não passava de um fracassado. Ficaria magoada se ela tivesse me
deixado, mas sempre parecia algo que iria acontecer e não uma questão de “se”.
Talvez ela tenha ido brincar de não ter filha e tenha acreditado demais no
jogo. Tudo bem, eu vou ficar bem. Sei disso, porque puxei a minha mãe. Sou
forte, sei me virar. Até parece que ela me criou pra isso.
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