Pages - Menu

domingo, 17 de março de 2013

Palavras no escuro - Parte I



- Eu quero dar o fora daqui.
Ela estava distraída. Seus olhos vagos se focaram em mim, confusos.
- O que?
- Dar o fora daqui. Eu quero fugir desse buraco. Deixar essa cidade para trás.
Não era a primeira vez que ela escutava essas mesmas palavras escaparem dos meus lábios. Um suspiro na escuridão - dela - carregado de tédio, cansaço e familiaridade. Nenhum traço de irritação entretanto.
- Por que?
"Dessa vez". As palavras não chegaram a sair, mas eu sei que estavam lá. Elas pairaram no ar entre nós: "Qual é o motivo dessa vez? Hm?".
- Aqui não tem poesia.
Essa é nova. Eu posso ver pelo jeito que as sobrancelhas dela arqueiam e o tipo de silêncio que desabrocha dela como uma rosa tímida. Ela tem tipos de silêncio, assim como tipos de sorriso e tipos de lágrimas. Eu conheço todos eles. Por isso, sei que ela nunca ouviu esse motivo antes. É novo para ela. Não para mim, eu já disse isso para mim mesma muitas vezes antes.
- Como assim "aqui não tem poesia"? Que diabos isso deveria significar?
Ela parece estar se divertindo e, ao mesmo, está falando sério. Ela seriamente espera uma resposta. Não sei porque, mas isso me irrita. Não o fato dela estar falando sério, afinal, eu também estou. Porém, quando ela não consegue identificar imediatamente o que minhas palavras significam, eu fico furiosa.
- Porra, Joan. Eu tô dizendo que essa cidade está afundada na merda e no tédio e no nada e na porcaria da realidade. É demais... Ou melhor, é de menos. Eu não consigo respirar o ar daqui.
Como se as minhas palavras a lembrassem do seu vicio, ela esticou o braço e pegou a carteira na mesinha. Acendeu um cigarro, lutando contra um sorriso. Ela realmente estava se divertindo as minhas custas - não que isso fosse alguma surpresa. Ela colocou na boca - o cigarro e o sorriso. Eu digo que não consigo respirar e ela faz isso. Tira-me o fôlego: a fumaça do cigarro, o sorriso dela. Não consigo respirar.
- Você não precisa de ar para criar. Poesia não respira.
Dou um risinho amargo.
- É aí que você se engana. Como qualquer outra criatura viva, a poesia respira.
O sorriso dela aumenta. Ela traga o cigarro uma, duas vezes. Solta a fumaça bem na minha cara antes de falar.
- Ar, não. O que a poesia respira?
Não sei se o gosto amargo na minha boca é da fumaça do cigarro dela, do riso que deixei escapar antes ou da resposta que dei a seguir.
- Arte.
E essa única palavra é dita com tanta tristeza que Joan para de sorrir. Eu não estou olhando para ela, mas sei que não está mais sorrindo. Sei por causa do silêncio que se instala entre nós. Não estou olhando para ela, estou olhando a minha volta, contemplando a falta de arte da minha cidade. A falta de tudo.
- Você está exagerando.
Eu estou distraído. Ela quebra o silêncio tão de repente que quase dou um pulo da cadeira. Não sei se imaginei ou se ela realmente disse algo.
- O que?
Ela me olha sem piscar. Se inclina mais para perto com sua expressão "vamos falar sério" e sussurra como se contasse um segredo:
- Você tem arte o bastante para mantê-las respirando. As poesias. Elas não vão morrer, nem se a cidade realmente estiver afundada na merda, no tédio, no nada e na realidade. Porque você não está.
Eu sussurro de volta:
- Não estou o que?
Quase perco a resposta dela na escuridão. Quase.
- Você não está afundada.
- Promete?
Por um momento, não sei se ela me ouviu. Não sei nem se a pergunta chegou a deixar meus lábios de verdade. Enquanto o silêncio e a escuridão se alongavam, perguntei a mim mesma porque estávamos sussurrando.
- Eu prometo.
Ela estava sorrindo para mim. Eu não precisava olhar para saber, mas olhei. Não perderia isso por nada. Esse era o meu sorriso preferido, do tipo que ela só deixava aparecer quando estava comigo no escuro.
- Por que estamos sussurrando?
O sorriso dela se modificou, tornou-se conspiratório.
- Porque eles não podem ouvir.
- Eles?
- Os outros. As pessoas dessa cidade. A própria cidade. A própria vida. Eles não pode descobrir a sua arte, se não vão querer tirá-la de você. Eles vão querer transformá-la em um deles.
"Em um deles". Estremeci. Ela havia dito isso como se fosse a pior coisa que poderia acontecer. Talvez fosse mesmo.
- Entendi.
Coloquei o dedo sobre os lábios enquanto me recostava na cadeira. Ela concordou com a cabeça e piscou para mim, o sorriso permanecendo em seus lábios por mais alguns segundos. De repente, ela pareceu se lembrar do cigarro que tinha na mão. Deu uma tragada. Alguns minutos depois, eu disse em alto e bom som:
- Ainda quero dar o fora daqui.
- Eu sei. Um dia nós vamos.


Um comentário:

Irene Chemin disse...

Você mora em Brasília? Por que aqui é exatamente assim! Só penso em ir embora.
Lindo texto, como todos os outros. Mas esse foi muito especial.