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terça-feira, 6 de março de 2012

Coração de pedra

Encontrei-a jogada na sarjeta. Atrás de um prédio abandonado, perto de umas latas de lixo... Foi engraçado. Triste, era tudo muito triste, mas mesmo assim foi engraçado encontrar uma coisinha tão bonita e arrumada em meio ao lixo. Ela estava usando o vestido amarelo, aquele que ela insistia comigo que era dourado como se fosse um ultraje chamar dourado de amarelo. Hoje ele parecia ainda mais opaco e ainda menos com dourado. Ela também estava opaca, nada se parecia com a menina radiante e despreocupada que tinha o mundo nas mãos. Estava opaca e no meio do lixo... Mas continuava linda. "Vem, seu lugar não é aqui", sussurrei para ela. Peguei-a pela mão e a ajudei a levantar. Quando ela fez menção de cair, passei o braço pela cintura dela, apoiando-a... Mas não a carreguei. Nunca mais a ergueria do chão e carregaria para casa. Ela teria que andar com as próprias pernas agora. Pensei em levar ela para minha casa, sentar com ela no sofá e abraçá-la enquanto ela chorava. Não, isso não. Não posso mais carrega-la. Levei-a para sua própria casa, coloquei-a na cama e sussurrei "boa noite", mas ela não fechou os olhos. Olhou-me vagamente, como se pudesse ver através de mim e estivesse encarando a parede oposta do quarto. "Eu só queria...", tentou dizer ela. Sua voz era um assobio fraco e o final da frase se perdeu num suspiro. "O que?", perguntei. "Eu só queria que a vida fosse diferente", a voz ainda fraca, mas agora clara. Fixou o olhar em mim, como se esperando que eu a pegasse pela mão e a salvasse. Ela queria que eu a carregasse, mas isso eu não podia mais fazer. Olhei para ela e falei como se meu coração fosse de pedra: "Você e todo mundo. Mas a vida é essa e você vai ter que lidar com isso...", sozinha, ainda pensei, mas não disse nada. Ela me olhou confusa, tomei seu olhar como uma pergunta - "Como?" - e continuei "Chora. Vai lá, chora a noite toda se precisar. Grita. Destrói os móveis. Mas amanhã de manhã você vai acordar e não vai chorar. Vai esconder o rosto inchado com a maquiagem e vai sorrir pro espelho. Vai sorrir pro mundo. Não importa se seu sorriso não é de verdade... Ninguém se importa que não é de verdade. Eles só querem que você vá lá, sorria e diga que está tudo bem. É assim que funciona". Quando terminei, a confusão nos olhos dela tinha se intensificado, mas havia algo mais... Magoa, acusação. "Você devia ter me salvado. Devia ter me abraçado e dito que ia passar", o olhar dela gritava para mim. Mas eu não podia mentir pra ela, não mais. Não que não fosse passar... Passaria, tudo passa. Mas ia acontecer de novo e de novo e de novo. Um coração de pedra, pensei, enquanto dizia: "Agora, para de choramingar. A vida é assim mesmo. Que tola você seria de pensar que é a única! Não é. Está todo mundo na mesma. Todo mundo sorrindo, dizendo que está tudo bem quando não está. Eles só esperam que você faça o mesmo. Entendeu?". Ela me olhou de um jeito estranho, pensei em ir lá e sacudir ela pra arrancar qualquer palavra, qualquer coisa. Depois de um minuto inteiro - pareceu mais uma hora - ela perguntou: "Por que ninguém se importa?". Um coração de pedra, tenho um coração de pedra. "Porque ninguém se importa", respondi. Aquelas palavras tinham gosto de chumbo, porque ao contrário do que eu tentava me convencer, meu coração não era de pedra. Eu tinha um coração de músculos e cheio de sangue como o de qualquer outro, tão propenso a doer e sangrar como o da garota a minha frente. Mas ela não percebeu isso. Para ela, eu tinha um coração de pedra e não me importava. "Eu me importo!", quis gritar. Mordi os lábios e engoli o amor como sempre faço com a dor, a tristeza e a solidão. Engoli o amor, me virei e fui embora. 

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