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segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Sophie e o amigo de vidro

Sophie transpassou a porta azul clarinha e correu para um fim de tarde da cor do outono. Tudo o que ela via eram as cores. Sophie tinha a mania de ver cada dia por uma perspectiva diferente. Hoje eram as cores. A menina saltitou até o balanço que pendia da Árvore Velha, mal sentou-se e já começara a balançar-se rápido, muito rápido. O vento era bom, era liberdade. "Quase como se tivesse asas!", pensou alegremente.
De algum lugar, surgiu aquele menino meio transparente feito vidro, quase invisível em meio aos tons alaranjados e amarronzados do outono. Veio de fininho e surgiu de repente na frente de Sophie enquanto ela balançava despreocupadamente.
- Charles! - Exclamou a menina quase atropelando o menino de vidro com o balanço. - Eu poderia ter lhe machucado de verdade! Você deveria tomar mais cuidado!
O menino ofereceu-lhe  seu sorriso mais travesso:
- Você só diz isso, porque a assustei! - Deu uma risada. - Peguei você direitinho dessa vez. De novo!
Enquanto o menino gargalhava uma risada que era como copos de vidro ao se tocarem para um brinde, seu sorriso parecia capturar os raios de sol que passavam através de seu corpo transparente.
- Você não me assustou. - Disse Sophie, apesar de seu coração parecer um tambor em seu peito, batendo rápido e ribombante. 
Charles lançou-lhe um olhar que queria dizer "Assustei, sim!", mas a menina fingiu não notar e continuou balançando. Depois de evitar encarar o amigo de vidro por alguns segundos, Sophie voltou os olhos para ele que hoje estava meio dourado, meio laranja. As cores do outono! E como hoje ela estava interessada nas cores, ficou encantada com o reflexo destas no corpo do amigo.
- Você está vestindo as cores do outono hoje, Charles. - Comentou a menina, em tom de quem aprova.
- Então, hoje são as cores. - Charles sorriu para ela.
Era uma afirmação, não uma pegunta, mas Sophie abanou a cabeça confirmando. Então, continuou a balançar, a admirar as cores do amigo e a pensar. Entre um balanço e outro, ela recordou de algo que mãe lhe dissera está manhã. O pensamento a deixou triste e concentrada, tanto que esqueceu de balançar-se.
- Sophie. - Chamou Charles. - Não está balançando. - E ao reparar na cara triste e pensativa da amiga, acrescentou: - O que há de errado?
- Minha mãe disse que estou ficando grande demais para você. - Disse a menina com a confusão nítida em seu tom de voz. - Que preciso crescer e esquecer você.
Charles encarou-a com aquela familiar expressão indecifrável. Ou talvez não fosse indecifrável, ocorreu a Sophie naquele momento. Talvez fosse só o fato de que os traços de vidro eram quase transparentes e difíceis de enxergar.
- Mas eu não compreendo! - Continuou a garota, acordando de seus devaneios. - Por que crescer significa que tenho que esquecê-lo?
Charles deu um grande suspiro. O maior que ela já vira o amigo dar e isso é algo, pois o menino de vidro suspirava muito: de saudade de Sophie, de rir tanto com Sophie, de impaciência quando Sophie dizia alguma bobagem, de tristeza por ter que deixar Sophie.
- Porque isso é o que significa ser adulto. - Respondeu o amigo, após de uma longa pausa (e um longo suspiro) - Você esquece das coisas de criança, seu senso de fantasia diminui e o seu senso de realidade aumenta.
Sophie pensou sobre aquilo. Tinha a ver com o fato de Charles ser imaginário. Aquilo nunca fora problema para ela até agora, mas parece que se tornou um problema já que ela deveria crescer. Ou, Sophie raciocinou, o problema não era Charles ser imaginário, o problema era crescer!
- Então, eu não quero ser adulta. - Exclamou ela, pulando do balanço e batendo o pé no chão. - Eu nunca quero crescer!
O amigo de vidro pareceu achar a determinação de Sophie algo divertido, até esboçou um sorriso, mas agora havia uma tristeza em sua essência transparente que nem os raios de sol conseguiriam mascarar.
- Isso não é você quem decidi. Todos crescem, Sophie.
- Mas eu não quero! - A menina bateu o pé pela segunda vez.
- Não pode impedir, já começou! - Charles disse tristemente. - Logo, você não irá mais ser capaz de me ver e depois vai me esquecer.
Sophie ia bater o pé pela terceira vez, mas então parou e pensou. Mesmo na infância, a menina tinha a sabedoria de parar e pensar antes de bater o pé para algo (ainda mais pela terceira vez!). Lá no fundo, ela já sabia que aconteceria, mas vinha reprimindo esse sentimento. Ela mesma achava que Charles ficava mais transparente a cada dia que passava. "Já começou!", a voz do menino de vidro ecoou em sua mente, mas foi seu coração que respondeu apertando-se num nó doloroso. Sentiu as lágrimas se acumularem nos olhos, prontinhas para cair. Então, como se os raios de sol que passavam através de Charles iluminassem a verdade na mente de Sophie, ela vislumbrou uma nova ideia.
- Talvez já tenha começado, talvez eu esteja mesmo crescendo e não serei mais capaz de vê-lo ou mesmo de ouvi-lo. E talvez isso aconteça logo. - Disse a menina, fazendo algumas lágrimas de cristal caírem dos olhos do amigo. - Mas eu nunca vou esquecer de você, Charles! Como seria possível?
- Você vai me esquecer! Todos os adultos esquecem. - Choramingou Charles.
Sophie aproximou-se do amigo colocando uma mão em seu obro de vidro, pareceu-lhe mais quente que o normal, provavelmente aquecido pelo sol que ainda brilhava nele.
- Não, Charles. Eu não o esquecerei. - Havia uma certeza inegável na voz da menina. - Eu sentirei sua falta.
- Não sentirá! Como pode sentir falta de algo que nem sequer existe? - Perguntou o amigo.
- Mas é por isso mesmo! Você não entende, Charles, que toda a questão é eu sentir sua falta. - Ela olhou nos olhos quase invisíveis do garoto. - Eu sentia sua falta antes mesmo de ter te conhecido, de ter pensado em você! Por isso, tive que inventar você. E vou continuar sentido sua falta quando você tiver ido. 
Charles pareceu tremeluzir enquanto os últimos raios de sol desapareciam no horizonte, mas ela sentiu o sorriso do amigo mesmo sem poder enxerga-lo.
- Ah, sim. Eu entendo agora. - Sussurrou ele, sua voz era como uma brisa fraca.
Quase tarde demais, Sophie compreendeu que era um adeus e que quando o sol se pô-se, o menino de vidro desapareceria. 
- Adeus, Charles. - Disse ela, deixando aquelas lágrimas que estavam presas em seus olhos caírem.
O último raio de sol desapareceu e com ele, Charles. Embora Sophie pudesse jurar que ouviu um "Adeus" flutuando entre os galhos da Árvore Velha.

***

Sophie cresceu e nunca mais foi capaz de enxergar ou falar com Charles, mas ela jamais esqueceu. Na verdade, ela tornou-se uma escritora e escreveu muitas histórias sobre Charles e sobre muitos outros de quem sentia falta mesmo antes de existirem. Não é isso que os escritores fazem? Eles sentem falta, eles criam. Afinal, não é só porque é imaginário que não é real. Para Sophie é real. Para mim também.

4 comentários:

bruna disse...

Lindo isso, Amanda. Muito bom.

Antonio Souza disse...

Ahh fazia tempo que vc não nos brindava com teus contos. Adorei.

Irene Chemin disse...

Terminei chorando por dentro. Me identifiquei tanto! Você escreve lindamente bem.

Amanda disse...

Awn, obrigada a todos (: