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terça-feira, 21 de junho de 2011

Redenção - Parte II (O fim)

Eles disseram que eu não podia, mas eu fui e quer saber? É tão melhor quando é feito sem o consentimento dos outros. Foi o vento que levou a voz delas até mim. Eram fracas, doídas e é disso que eu gosto. Por favor, perdoem meu gosto soturno pela dor alheia, mas eu fui feito desse jeito. Fui pisando em nuvens, literalmente. Havia muitas delas naquela noite e estava frio. Deitei-me e espiei por uma pequena brecha entre elas, as nuvens. Se alguém por acaso olhasse para cima nesse exato momento, me confundiria com uma estrela. As duas figuras lá embaixo eram pequenas. Eu estava vendo a cena de cima e tudo era pequeno, mas elas eram tão pequeninas que pareciam se encolher para dentro de si mesmas, tentando desesperadamente não chamar atenção. Bem, não haviam conseguido. A menor me chamou mais atenção, era uma criança. Daqui não pude decidir se era menina ou menino e, sinceramente, eu não me importava. Ela estava tão destruída por dentro que pensei que estava com problemas de visão. Tão jovem e tão quebrada. Ah, isso é algo que eu posso fazer: Eu enxergo dentro das pessoas, vejo suas almas e sua dor. A segunda estava tão destruída quanto a primeira, mas era menos jovem. Talvez vocês dissessem que ela era uma mulher ou talvez uma menina, para mim são todos crianças. Pobres crianças cegas que não enxergam além do superficial, do óbvio, do externo. A lua saiu de sua toca nas nuvens e iluminou a cena por um momento. Foi aí que eu vi o sangue... Havia muito agora, escorrendo do peito da moça mais velha, tingindo seu vestido de vermelho e fazendo uma poça nos degraus. Pensei numa cachoeira. Eu sei que parece cruel, mas o jeito como o sangue pingava de degrau em degrau me fez pensar numa cachoeira. A criança olhava o sangue escorrer em sua direção como num transe, o que pensaria ela? Por tudo que é mais sagrado, o que ela estaria pensando agora? O sangue, a dor, o frio, a moça. Talvez ela também tenha pensado numa cachoeira. É muito improvável, mas posso lhes contar uma coisa? As crianças veem as coisas de um jeito diferente, assim como eu. Alguém disse algo. Talvez a criança, talvez a moça, talvez a lua. "O amor...". Ah, o amor. As duas lá embaixo foram despedaçadas pelo -pela falta de- amor. Estranho como duas almas podem ser tão diferentes e tão iguais. Estas eram as que eu mais gostava, aquelas que morrem, mas continuam vivendo. São as mais bonitas e as mais tristes. Não me censure agora, você sabia desde o começo sobre minha queda pela dor. Eu tenho estas asas negras e trato de vesti-las todos os dias, pois não sou chegado em hipocrisia. Se todos vestissem suas opiniões, não seria melhor? Se todos vestissem seus sentimentos, não seria mais fácil? A criança lá embaixo, ajoelhada em meio a uma cachoeira de - amor - sangue, tocou o liquido vermelho. Era quente. Tudo na moça estava frio, mas seu sangue era quente. A criança olhou a palma manchada de vermelho, o olhar parecia decifrar um enigma milenar. Droga, o que eu não daria para saber o que ela estava pensando agora! Mas acho que também não importa, pois estava quase no fim. Eu poderia dizer que a mancha vermelha que brotou do peito da moça era apenas uma metáfora para o amor, que o sangue era só parte da poesia e que a criança suja e faminta era só um manifesto da minha imaginação, mas eu não sou de mentir. A moça segurava uma faca na mão esquerda e ela a havia usado. Entendam, não foi um ato de loucura ou covardia, mas um ato de redenção. Havia algo em seu peito, venenoso, letal e que precisava ser aniquilado. Ela o fez, ela conseguiu. Pendeu para frente e depois para trás, caiu sobre a cachoeira de seu próprio sangue, perto da criança. Estava morta antes de tocar o chão. Na verdade, estava morta muito antes de enfiar uma faca no peito. A criança estendeu a mão pela segunda vez hoje e, dessa vez, pôde tocar a moça. Nevou, então. Neve e sangue. Amor e morte. E a fome. Ah, a droga da fome. Foi a última coisa que a criança sentiu. O frio, sim, mas a droga da fome devorava suas entranhas. A neve escondeu os corpos, mas não as almas. Sussurrei para elas um último adeus: "Eu as amei.". Foi isso que eu disse e era verdade, pois não minto. Eu verdadeiramente as amei, por sua dor, por suas almas despedaçadas, mas era amor. Um amor fugaz, mas era de verdade e eu o ofereci à suas almas. A criança devorou o amor vorazmente, mas a moça só respondeu "Não, obrigada". Eu poderia dizer que inventei tudo isso. Você se sentiria melhor assim? A hipocrisia te conforta? Se é conforto que você procura, saiba que pelo menos elas não estavam sozinhas, tinham uma a outra. E a mim, mesmo que minha presença não seja conforto nenhum.

3 comentários:

bruna disse...

"Estas eram as que eu mais gostava, aquelas que morrem, mas continuam vivendo. São as mais bonitas e as mais tristes."
Lindo, e triste.

Antonio Souza disse...

Melancólica cena... pobres crianças, porque tão destruídas por dentro? Tanta dor, em cores que narram a curta trajetória de duas vidas; branco, vermelho... e o negro da morte. Tanta dor, e ainda lhes restava o fim... e ele chegou.
Vlw Amanda!

Amanda disse...

Obrigada.