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quinta-feira, 17 de março de 2011

Subúrbio

A violência mancha  a calçada de vermelho. A garotinha não deve ter mais de 14 anos, roupas de mulher precoce, sorriso venenoso. Ela me disse que é sangue de verdade, a garotinha me disse. Os espectadores tentam chegar mais perto pra dar uma olhada, acho que vi câmeras nas mãos de alguns deles.
Acho que alguém chamou a policia, porque escuto sirenes ao longe. O barulho da violência enche a cidade de caos. Um senhor se aproxima do corpo, olhos esbugalhados de quem não acredita. Ele olha, olha, olha... De repente cai de joelhos no chão gritando pro céu. O sangue manchando a calça do homem que caiu de joelhos na calçada. É sangue mesmo, a garotinha do sorriso venenoso me disse. O homem de joelhos grita sua dor vermelha para o céu negro. Céu sem lua, sem estrelas. A polícia ainda não chegou.
Ninguém fez nada pelo homem. Ninguém levantou ele do chão vermelho. Uma mulher de jaqueta cor de rosa tenta se aproximar mais para ver o show. Uma velha ao meu lado sussurra para outra que aquele homem de joelhos era o amante da falecida. "Amante? Então a puta mereceu", diz a outra de volta, nem se dá o trabalho de sussurrar. Luzes vermelhas inundam a cena já vermelha. O homem de joelhos passou a chorar baixinho.
Policiais dizem para as pessoas irem embora, ninguém se move. Um policial se aproxima do corpo, olha para mulher morta com uma piedade calculada, treinada. A mulher, ela se tornou vermelha. Eu não sei dizer se era bonita. Longas cicatrizes foram feitas no seu rosto e no seu corpo. O sangue inunda a calçada, é de verdade. A mulher tão morta, tão vermelha, estirada no chão como uma boneca velha. A polícia disse que foi o marido. 
O marido da mulher vermelha pegou uma faca e cortou ela todinha, claro que antes ela não era vermelha. Os policiais tentam levantar o homem. Aquele que caiu de joelhos na calçada inundada com o sangue da mulher que ele amava. Ao menos, eu suponho que ele a amava. Um policial se aproximou dele. "Você tem que sair daí", disse ele. Nada. Tentaram tirar-lhe a força, então algo aconteceu. O climax, o climax!
O homem recomeçou a gritar. Rastejou até o corpo da amante, gritando sobre o mundo feio e sujo no qual vivíamos, sobre a gente cruel e podre que cercava o corpo como abutres e sobre o Deus sádico que havia criado tudo isso. "Meu Deus, meu Deus", alguém exclamou horrorizado a meu lado. Deus? Eu preciso dizer algo sobre ele. Se ele existe mesmo, ele deve ter ouvido os gritos daquele homem. Porque aqueles gritos eram tão afiados de dor e raiva que atravessariam qualquer barreira entre a humanidade e a divindade.
Minutos depois, o corpo foi levado, a multidão se dispersou e só sobrara ali o homem. Sentado na calçada, com os olhos mortos e as calças vermelhas de sangue e as palmas das mãos também e o coração e os olhos. O homem sangrava dor. O seu silêncio era mais violento do que seus gritos.
Um senhor se aproximou da garotinha, aquela com o sorriso venenoso que me disse que era sangue de verdade. "O que aconteceu?", perguntou o senhor. Ela cansada de contar a mesma história ou por qualquer outro motivo oculto na sua peculiar existência apenas disse "Enlouqueceu, o pobre diabo".
Enlouqueceu? Com certeza, mas olhando para o homem na calçada, sujo com o sangue da pessoa que ele amava, eu me perguntou: "Quem não enlouqueceria?". Todos nós não enlouquecemos um pouco à nossa maneira? Talvez seja o único jeito de sobreviver ao mundo.
O sol nasceu vermelho hoje. 

5 comentários:

Antonio Souza disse...

Subúrbio, sangue vermelho, dor, sangue de verdade, espectadores, luzes vermelhas, cena vermelha, silêncio mais violentos que seus gritos...
Cenário narrado com uma visão reflexiva, quase imparcial, com uma cadência poética.
Sem dúvida gostei! Ia mesmo ler Meridiano de Sangue, quando notei a atualização do blog, e a coincidência foi tênue.
O ritmo da narração quase me permite sentir o estado de espírito da escritora; sereno, contemplativo, imerso na cena que descrevia.
Num dia em que o Sol nasce vermelho e a noite cai fúnebre e nefanda, gritos de dor são só consequências, reflexos.
Valeu Amanda! Muito bom!!

Amanda disse...

Oh, obrigada.

Rafaela Amaral disse...

Amanda, tem um selo pra ti aqui http://changingallchannels.blogspot.com/2011/03/mesmo-com-atraso-os-selos.html
beijos

wanessa g. disse...

Que perfeição. A única palavra que encontro no momento, sério. Adorei a descrição que fizestes de tudo e ressaltando as cores: sangue, mulher vermelhos; mulher de jaqueta rosa. Adorei, meus parabéns.

Amanda disse...

Só tenho a agradecer pelo comentário de vocês. É isso mesmo, não tenho muito a dizer. A verdade é que eu gosto muito de ouvir a opinião dos outros sobre o que eu escrevo, sendo ela negativa ou positiva.
De novo, obrigada.