E a fé que eu tinha em mim, cadê? Essa é a pergunta que faço todo dia quando acordo; jogo-a no passarinho sentado de maneira jocosa na minha janela - aquele maldito me acordou às 6h da manhã de novo! Repito várias vezes na frente do espelho, encarando essa frágil boneca de porcelana - suas rachaduras estão visíveis, boneca; você é nova demais para estar tão rachada; você deveria se cuidar melhor, menina; dá uma mão de tinta que ninguém vai perceber que vocês está toda quebrada. Os olhos dela perdem o brilho já escasso a cada palavra repetida que deixa meus lábios - seus lábios? - até que me pareçam ocos, prosaicos, impossíveis de encarar. Repito a frase ainda algumas vezes, pelo menos até as palavras perderem completamente o sentido. Faço isso enquanto escovo os cabelos - a tinta parece escorrer deles imediatamente depois que eu os pinto; é só impressão, dizem alguns. Talvez seja, mas não tenho como saber; eles mentem bem demais. Quando fé não passa de uma monossílaba melódica e mim seja o som do canto de um passarinho exótico do qual não sei decifrar a língua, largo a escova, aceno com a cabeça para a boneca no espelho: estou pronta para enfrentar o dia.
Estou mesmo? O menino sentado na minha cerejeira dúvida muito disso. Ele dá risada do meu passo seguro e da minha expressão neutra - neutra não, vazia, murcha - quando passo pela árvore no caminho do trabalho. "Não tenho tempo para isso, pirralho! Estou indo trabalhar." é a resposta que eu dou à risada dele, sempre. Não tenho tempo para isso, nem para aquilo. Não tenho tempo para ser triste, não tenho tempo para chorar, não tenho tempo para sentir, não tenho tempo para morrer. Isso coloca um sorriso conformado no meu rosto; a falta de opção é um alívio.
As vezes, por mais que eu fuja disso, pego vislumbres do meu rosto em superfícies espelhadas. Com uma sensação de distanciamento, pergunto a mim mesma quanto tempo ainda vou ficar presa dentro desse corpo de porcelana. Eu pergunto à boneca e ela me responde: e a fé que eu tinha em mim, cadê? "Aqui dentro não está", eu poderia responder. Poderia, se entendesse as palavras, se elas fizessem algum sentido. É com uma total indiferença que vejo o fim do expediente se aproximar; a pressa que antes me causava ansiedade, me acelerava o pulso, agora me embala no ritmo do resto da sociedade. Eu respiro fundo e me deixo levar.
Ao voltar para a casa, constato que o menino não está mais sentado na minha cerejeira. Sinto uma sensação engraçada de algo saindo do lugar, de pedacinhos se descolando uns dos outros. Acho que adquiri mais algumas rachaduras; dessa vez, por dentro. Suspiro. Os suspiros são parte essencial da minha personalidade agora, eles viraram uma forma de "olá". Suspiro de cansaço todo mundo entende. A noite, cobri o espelho do meu quarto; não conseguiria aguentar que o reflexo nele me jogasse as palavras de volta na cara até elas adquirirem sentido novamente. Além disso, o olhar de vidro da boneca assombra meus sonhos, afugenta eles para longe.
Recolhido todos os meus pedaços, jogo-os sobre a cama esperando que eles se emendem durante o sono. Antes de conseguir apagar as luzes, percebo que deixei a janela aberta... Deixei mesmo? Do lado de dentro, um montinho de penas jaze imóvel no chão. É o passarinho que me arranca dos braços do sonho e me joga cruelmente de volta a consciência. Está morto, gelado, duro. Olho para fora, a noite é escura, sem lua; não consigo enxergar minha cerejeira. Dá até para duvidar da existência de qualquer cerejeira no meu quintal, de qualquer menino que ri da minha falsa aceitação, de qualquer emprego que me sustente. Nessa escuridão, dá para duvidar da existência de qualquer mundo ou alma viva lá fora. Caio de joelhos, os olhos grudados no meu passarinho - MEU, SIM! Nem me passa pela cabeça que ele era o único despertador que tinha e, com sua morte, não tenho certeza se acordarei amanhã - ou algum dia. Eu o pego nas mãos sem nojo algum, envolvo sua forma frágil - mais frágil do que eu, quem diria! - nos braços, descanso ele no meu colo. Eu choro pela primeira vez em anos.